Canção de guerra
O dia raiou cinzento, a fumaça produzida pelas explosões
dificultava a visão. Mikail devorava a nojenta papa feita de aveia e trigo com
voracidade, embora a bala humana não o matasse conseguiam feri-lo gravemente.
Paul alternava o olhar entre o querubim e a terra de
ninguém, para lá da trincheira sua mão tremia nervosamente, seus dedos
apertavam um pálido crucifixo de um pequeno rosário.
-Não aguento mais. –Finalmente disse, seus olhos castanhos e
arregalados focaram o soldado a sua frente. –Não aguento mais sangue, não
aguento mais explosões, se não fosse essa merda eu estaria em casa tomando uma
xicara de chá com maravilhosa esposa. –Suas mãos tremulas aconchegaram a lapela
do grosso casaco, pequenos flocos de neve caiam, junto com ela vinha um frio de
doer os ossos. –E meu querido Tome e minha graciosa Alicia estariam brincando
perto da lareira. –Calou-se pensativo, ou talvez apenas estivesse esperando uma
resposta do soldado que devorava a tigela de mingau de aveia e trigo.
De repente um dos soldados que estava de vigiava caiu no
chão, um buraco da grossura de um dedo fora aberto no centro de sua testa, as
mãos de Paul começaram a tremer ainda mais, não adiantava chamar um medico o
homem estava morto, um barulho ensurdecedor e os gritos dos rifles voltaram a
soar ferozmente entre as trincheiras. Uma granada explodiu não muito longe de
Paul e Mikail, mas não foi perto o suficiente para feri-los.
-Sabe ficar ai sentado chorando igual a um merda não vai te
ajudar a voltar mais rápido para casa. –Mikail destravou o rifle. –O medo te
torna em um alvo ainda mais fácil.
Paul pegou o rifle e o destravou com muita dificuldade,
agora só precisava apertar o gatilh, Mikail o ajudou a se levantar, um sorriso estranho e despreocupado estava
estampado no rosto do anjo.
-E você Mick? O que estaria fazendo na véspera do natal?
–Paul apertou o gatilho e a arma rugiu.
-Não sei! Talvez estivesse bebendo em algum bar lá em
Liverpool.
-Você não tem para quem voltar? –Uma bomba estourou alguns
metros afrente, Paul abaixou o rosto para protegê-lo dos estilhaços, o estrondo
o deixou um pouco zonzo.
-Eu tenho, só não posso e não quero. – Mikail lembrou-se por
um estante das torres do castelo da luz e das espadas de seus irmãos
guerreiros.
-Por quê? –Mikail arrancou o lacre de uma granada e a
lançou, se abaixou para fugir dos estilhaços, mais homens caíram quando a
granada explodiu, e pelos disparos de sua companhia.
-Haniah! –Disse em
voz baixa. –Há! Há! Há! –Era irônico lutando pelos meros mortais que tanto
desprezava em vez de se juntar a seus irmãos no Acheron lutando contra os rebeldes. –Problemas estúpidos. –Deu uma
desculpa qualquer ao soldado.
Grande parte daquele batalhão fora abatida pelo inimigo, os
tiros não paravam e a cada instante as
trincheiras se transformavam ainda mais uma grande vala, onde corpos se
acumulavam e sangue escorria.
O frio era intenso, Paul e outros soldados se mantinham-se
agitados ao redor de uma pequena fogueira, seus músculos rígidos por causa do
frio ardiam, grande parte dos feridos e muitos outros morreram graças ao frio
gelo.
Mikail estava sentado isolado em um canto qualquer, estava
em sua vida passada, em todas as guerras que travara naquela maldita terra,
veio-lhe raiva, tristeza e saudade, então uma luz veio a sua mente, em todas
aquelas batalhas que travaram os grandes homens as travaram apenas por poder,
mas seus soldados lutaram por fé e bravura, Mikail enxergou finalmente uma
pequena parte humana que se igualava ao seu ser angélico, à sua honra de querubim,
diante daquilo sentiu orgulho de estar ali, levantou e foi ajudar os feridos, a
levantar a estima dos já derrotados. Os gritos dos fantasmas já não faziam sua
cabeça doer.
-Sabe Mick quando a guerra acabar você não vai passar o
natal bebendo em Liverpool, vai vir festejar com a minha família. –Os lábios
roxos do soldado tremiam. –Você vai se entusiasmar.
-Parece tentador, mas antes precisamos vencer uma guerra não
acha? Há! Há! Há!.
O breu tomou o céu, os rifles e canhões não se calavam,
assim como a neve não parava de cair. Paul e Mikail passaram horas conversando,
mas agora tinham que vigiar e atirar.
Faltava pouco para a meia noite, fortes rofões sobre os
soldados, a tremedeira de Paul diminuirá, Paul mirava, a ponta de um capacete
alemão estava a sua vista, assim que apertou o gatilho uma granada voou sobre
sua cabeça e explodiu muito próximo do
atirador, os estilhaço os feriu gravemente. De repente tudo se calou, Mikail
ficou zonzo, o mundo começou a transluzir entre o cinza e a colorido, ele via
os fantasmas gritarem mas não consegui ouvi-los, sentia que o mundo espiritual
tentava traga-lo, até que viu Paul caído no chão todo ensanguentado, seu peito
estava perfurado por um estilhaço de metal.
O rosto de Paul estava estranho, ele estava rindo:
-Como pode estar rindo, esta quase a beira da morte. –O anjo
tentou estancar a hemorragia pressionando o peito de Paul.
-Não vê? É natal Mick.
-É! É natal e estamos no meio de um campo de batalha,
percebo também que há milhares de homens morrendo, não consigo ver aquela
alegria que você tanto me falou.
Paul olhou para o anjo e disse:
-Então...me ajude...me... –Soltou uma golfada de sangue. –Me
ajude...a cantar...
-Como? Cantar! Esta delirando? –Mikail conseguia ver o
espirito de Paul aos poucos se desligando do corpo carna.
-Vamos...droga.
-Tá! Qual ?
-“noi...te feliz,
noi...te feliz”. –A cada palavra Paul quase se afogava em seu próprio
sangue.
-“Noite feliz!”.
–Mick continuou, embora não gostasse muito do natal, para ele aquela foi a data
que um guerra mais sangrenta que aquela que ele estava travando iniciou-se. –“Ó senhor Deus de amor”
- “Pobrezinho nasceu
em Belém”. Os outros soldados da companhia se juntaram à canção, até que
toda aquela trincheira abaixou as armas também começou a cantar.
Mikail olhou em direção do inimigo, eles também baixaram as
armas, alguns caminhavam até a terra entre as duas trincheiras, alguns homens
de seu próprio batalhão foram ao encontro dos inimigos, mas ao invés de se
matarem trocavam condolências e dividiam xicaras de chá quente.
-Co...como? Como os mortais podem estar em guerra, e
cantarem à saúde um do outro ao mesmo tempo,
-É o poder da fé. –Paul lhe respondeu do mundo espiritual,
seu corpo material estava inerte e sem vida, maso pálido e cansado rosto tinha
um grande sorriso estampado no rosto.
-Fé em que? Em um menino.
-Se olhar bem, aquele menino não mudou apenas o rumo da
história humana.
Fora por causa daquela criança em Belém que a guerra civil
começou, foi por causa daquela criança que Gabriel abandonou seu as ordens de
Miguel, Mikail se viu envergonhado, vergonhado de ter escolhido lutar pelo
orgulho de seu general ao invés da honra de Gabriel.
O fantasma de Paul foi desparecendo aos poucos, em um
demorado degrade, Mick sentiu o tecido da realidade de afinar até quase não
senti-lo mais, a fé de todos ali tornava aquele campo sangrento quase e um
santuário.
Nenhuma bala foi disparada naquele natal, nenhum homem foi
morto, mas a guerra não havia acabado, na manhã seguinte os rifles voltaram a
berrar e bombas explodir.
Aquele natal não ficou marcado somente na historia dos
homens, mas na lembrança daquele querubim. Quando o confronto mundial acabou
Mikail voltou as paragens celestes e se uniu ao anjo da anunciação pedindo
alforria e que o aceitasse em suas fileiras.
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