Dor.
Ainda estava escuro.
Parecia que sempre esteve escuro. As trevas abraçavam Ona com tal intensidade
que pareciam uma manta, oprimindo-o de todas as sensações. Exceto a dor. A
sentia em cada parte do corpo. Corpo. Que corpo? O que era isso? Parecia fazer
tanto tempo desde que teve um.
E então veio o calor.
Há mil anos atrás era dia, não era? Ou era noite? O que havia acontecido? Só
lembrava de... não, não conseguia se lembrar. Apenas a dor, o calor e a
escuridão. Estavam com ele desde sempre, não estavam?
Eis que a pressão
chegou. Havia algo em cima dele. Vários algos. Ele se lembrou que tinha um
corpo. Tentou se mover, se lembrava vagamente de como era isso. Só que não
conseguia. Não podia.
Estava enterrado vivo.
Esse pensamento surgiu
como um clarão na escuridão eterna. E com ele veio o pânico. O pânico lutou
acirradamente com as trevas, encobrindo a dor e o calor, mas não a pressão,
essa continuava lá. Só que o pânico conseguiu vencer as trevas, sugando o
garoto de volta ao mundo exterior.
Ona abriu os olhos.
A primeira coisa que
viu não fez muito sentido para ele. Sua visão estava semi-encoberta por
destroços da carroça, mas via uma impressionante quantidade de orcs sentados em
semi-círculo, bem distantes dele, e uma espécie de palco no centro. Não
conseguia ver o que estava na frente deles devido a um pedaço desagradável de
madeira, mas via Lisa sentada no chão, mantida presa por um orc. Tentou virar o
rosto para ver melhor, percebendo o sangue em seu rosto, e percebeu Tony e
Marcus na mesma posição. Lisa estava surpreendentemente ilesa, mas Tony tinha
um grande ferimento na testa, empapada de sangue, e Marcus segurava um braço
que pingava vermelho. Todos tinham correntes grossas penduradas no pescoço,
seguradas por seus captores.
Ona se perguntou onde
estava Loretta, e parecia que um dos monstros o ouviu, pois um orc entrou no
seu campo de visão, arrastando a arqueira. Ela também parecia ilesa, mas o seu
captor a colocou ajoelhada em frente a bizarra platéia, amarrada pelos pulsos e
pelos tornozelos. Aquilo parecia estranhamente familiar a Ona, como se ele já
tivesse lido sobre algo assim. O orc captor começou a falar uma série de
dizeres na língua dele, enquanto os outros repetiam uma mesma palavra.
Sh'akahar.
O sangue de Ona gelou,
até mesmo o que estava do lado de fora de seu corpo. Sh'akahar era o nome orc
para execução. Só que a execução orc não era limpa, nem simples. Consistia em uma série de tortura antes do condenado pedir a morte. Caso isso não ocorresse...
Ona sabia, em seu
âmago, que Loretta jamais pediria a morte. Seu orgulho tomaria conta de seu
corpo, a única coisa que a manteria em um pedaço durante a tortura. Só que,
quando o processo do Sh'akahar era estendido, pedaços eram retirados. Ona
tentou se mover, mas os destroços da carroça eram muito pesados, e o prendiam
firmemente ao chão. Talvez tenha sido por isso que não o tinham achado. Uma
benção e uma maldição ao mesmo tempo.
Ele se virou
aterrorizado para o semi-círculo, enquanto o executor e torturador, chamado de
Akahar, retirava uma faca do bolso. Ele a colocou na garganta de Loretta,
segurando-a pelos cabelos. Resmungou algumas palavras em seu ouvido, que Ona
não escutou, mas conseguiu ver o cuspe que ela soltou em cima do monstro.
Revoltado, ele a socou, jogando seu rosto ao chão com uma velocidade absurda. De
onde estava, Ona conseguiu ver o sangue dela voando.
A platéia começou a
xingar e a bater os pés. O Akahar se prostrou em cima dela, e bateu
sua cabeça no chão. A levantou pelos cabelos, e voltou a colocá-la de joelhos. Pegou
uma faca, alisou-a, e a abaixou, cortando o ombro de Loretta.
Ela não fez nenhum
som, mas Ona tentou desesperadamente se mover, parando quando os destroços
pareciam desabar. Ele olhou, imponente, enquanto o Akahar colocou a lâmina
inteira da faca, no corte de Loretta. Sangue espirrou, mas ela ainda não fazia
nenhum som.
Ele sentiu a fúria
correr por seu corpo, enquanto tentava se libertar em vão. Daria qualquer coisa
para salvar Loretta, qualquer coisa...
- Ona. - disse uma voz
ao seu lado.
Se ele não estivesse
coberto por quilos de destroços, Ona poderia jurar que tinha saltado meio
metro.
Virou rapidamente o
pescoço, e viu Ankho ao seu lado, ajoelhado atrás do ninho de destruição que
aprisionava o garoto.
Ele rapidamente
transmitiu a raiva que sentia dos orcs para Ankho.
- Você.
- Sim. Ouvi uma explosão,
e vim aqui conferir.
- Ah, que ótimo.
Talvez isso não tivesse acontecido se você tivesse vindo me procurar.
Ankho ficou
visivelmente encabulado, e virou seu rosto para baixo.
- Sim, eu sei. Ona,
você é a manifestação de todos os meus erros. Eu poderia me desculpar o tempo
todo, mas - ele olhou para o garoto, com uma expressão mais dura no rosto. -
temos coisas mais importantes para nos preocuparmos agora.
Ona concordou
lentamente com a cabeça. Por mais que não aguentasse ficar perto do guerreiro,
sabia que tinham que salvar os outros o mais rápido possível. Ankho levantou a
cabeça e olhou para o Sh'akahar, observando a platéia, o torturador, e os
outros. Sua expressão ficava mais sombria a cada instante.
Finalmente ele quebrou o silêncio.
Finalmente ele quebrou o silêncio.
- Eu tenho um
plano, mas você não irá gostar dele.
- Diga.
Ankho se virou para
ele. - Preste atenção. Tenho um pouco de explosivo comigo. Eu posso correr e me
livrar do torturador e dos outros captores, mas há uma grande quantidade de
orcs prontas para me matar no instante que perceberem. Eu poderia carregar o
explosivo até eles, mas assim que perceberem que estou o segurando, vão se
dispersar e talvez o dano não seja tão eficiente. Por isso, vou te dar a bomba,
e seguirei na sua frente até chegarmos no meio deles. Ela deve explodir nesse
momento.
Ona pensou no plano.
Parecia fazer sentido, mas... - A bomba quando explodir deve nos acertar também.
Pela cara de Ankho,
ele sabia. Ona gelou.
- O quê? Esse é o seu grande plano? - O melhor que tenho. Eles não podem saber da bomba, e te cobrirei até chegarmos no meio deles. Se formos rápidos o suficiente, eles não te perceberão.
- O quê? Esse é o seu grande plano? - O melhor que tenho. Eles não podem saber da bomba, e te cobrirei até chegarmos no meio deles. Se formos rápidos o suficiente, eles não te perceberão.
- Ah, agora você
quer minha ajuda? Você destruiu minha cidade e agora quer me mandar para o
sacrifício?
- Ona. - Ankho
se aproximou dele. - Nada que eu possa fazer vai me perdoar por Aikon. Sei que
trazê-lo para isso não é o certo, mas é o único jeito. Esses orcs provavelmente
vão torturá-los, matá-los, e depois correr para a prisão. Se derrotarmos eles
aqui, podemos garantir paz por mais tempo. Não é muito, mas é o que me disponho
a fazer pelo que aconteceu em Aikon. Posso fazer sem você, mas talvez não
funcione. Por isso te peço ajuda.
Ona olhou para ele.
Olhou para seus olhos. Só havia dor. Ele percebeu que Aikon queria morrer
assim, nem que isso jamais o perdoasse por ter abandonado sua cidade. Ele não
conseguia mais viver pelo remorso.
Então Ona perdoou
Aikon.
- Certo. - Ele
engoliu seco. - Vamos.
Ankho retirou
lentamente os destroços que estavam em cima dele, e Ona rastejou até ficar
atrás do guerreiro. Ele deu para o garoto a mesma argila negra que tinha
começado a rebelião, no que pareciam ser anos no passado. Ona sentiu suas mãos
tremendo, enquanto fitava o objeto como se as respostas da vida pudessem ser
encontradas nas reentrâncias rudes que marcavam o relevo da bomba. Aquela era a hora. Ankho
olhou mais uma vez para o cenário e se virou pela última vez para Ona.
- Está pronto?
- Sim.
Ona acendeu o pavio.
Ona acendeu o pavio.
Aikon se levantou e
começou a correr, com Ona em seu encalço. Os orcs pareciam não perceber sua
investida, tão interessados na tortura. Ele tirou seus dois machados de
arremesso das costas e arremessou contra os três captores de Lisa, Tony e
Marcus. O primeiro machado arrancou a cabeça do captor de Lisa, enquanto o
segundo cortou o pescoço dos outros dois, em um giro mortal. Os captores
caíram, enquanto os prisioneiros ainda estavam em estupor. Ona olhou para eles.
Tony e Marcus pareciam estupefatos demais para percebê-lo, mas Lisa o olhou nos
olhos. Uma eternidade e um momento se passaram, e Ona quase desacelerou. Mas
quando mil anos se passaram, se viu continuando correndo atrás de Ankho.
O pavio chegava na
metade.
Os orcs pareciam não
ter percebido a chegada do gigante, mas ele se fez aparecer com um movimento impiedoso,
onde cortou no meio o Akahar. Sangue de orc espirrou, e a platéia se viu com um
guerreiro de dois metros em cima deles. Começaram a
correr, tentando se reorganizar. O
elemento surpresa cavalgava novamente, levando Ankho e Ona pela última vez.
O pavio diminuía.
Ona passou por
Loretta. Ela parecia em maus pedaços, mas olhou incrivelmente surpresa para
Ankho. Percebeu por um milésimo de segundo a figura pequena de Ona correndo
atrás dele, mas eles não chegaram a se entreolhar.
Ainda faltava muito do
pavio? Ona nem se atrevia a olhar mais.
Alguns orc mais
rápidos começavam a atirar flechas para o trem que era Ankho. Duas acertaram
suas omoplatas, e outra perfurou seu joelho. Ele pareceu cambalear, mas
continuou em frente. Mais flechas eram enviadas, e o corpo do guerreiro
aguentava todas.
O pavio parecia que
não acabaria nunca.
De repente estavam no
meio dos monstros. Ankho saltou, e arrancou a cabeça de dois orcs em um único
movimento. Mais flechas eram lançadas, e finalmente ele tombou.
Ona se viu no meio dos
orcs. Tamanhos diferentes, armas diferentes. Só que todos estavam de repente
olhando para ele. E todos olharam para a bomba.
Ele olhou para baixo.
O pavio estava no fim. Obrigado.
E então o mundo
explodiu.
Muito se falou sobre
esse dia. Sobre como dois homens se lançaram à morte para defender honra,
amigos, amantes. Sobre um ato que garantiu paz, o suficiente para humanos
poderem se organizar e defender sozinhos suas terras. Sobre uma guilda de
mercenários, que se mudou do deserto para lugares mais lucrativos. Sobre como
um homem se viu diante de todos os seus erros, e lutou contra eles até o fim.
Sobre o perdão entre duas pessoas que partilharam sentimentos de veneração,
humildade, raiva e aceitação. E sobre um garoto que idealizava heróis, apenas
para na derradeira hora, se tornar um.
Essas foram as
crônicas de Ona.
Mtheus Forny
@matheus_forny
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