Volume 1: Resgate
A carroça balançava em um
ritmo regido pelas pedras da estrada. O chão arenoso e laranja era banhado sem
nenhuma piedade pelo sol, e não havia nenhuma nuvem à vista para impedí-lo.
Geralmente não havia. O deserto de Gohr, como era chamado na língua dos orcs
que habitavam-no, era famoso por sua péssima recepção aos viajantes. A
temperatura beirava cinquenta graus em um dia normal, afastando qualquer
espécie de turista. Não que os nativos se importassem, afinal orcs não são a
espécie mais receptiva.
No entanto, a carroça seguia
seu lento trajeto, solitária em meio a um inferno de pedras. Era puxada por
dois cavalos cansados, conduzidos por uma mulher alta e esguia, trajando vestes
e negras e longas, destacando-a no ambiente predominantemente laranja. Dentro
da carroça, protegida do sol pelo tecido branco e grosso que a cobria, estavam
organizados alguns arcos, várias aljavas cheias de flechas e duas sacas
tilintando de moedas de ouro. E, no fundo do veículo, com suas pernas
balançando do lado de fora e fisionomia cabisbaixa, havia um jovem.
Ele tinha dezesseis anos, pele
clara e cabelos ruivos e bagunçados. Era magro, e trajava uma camisa sem mangas
e uma calça simples, ambas originalmente brancas, mas agora amarrotadas e sujas
de sangue e areia. Seu rosto era fino e prolongado, com olhos grandes e verdes,
nariz arrebitado, lábios pequenos e uma coleção impressionante de sardas. Uma
longa e recente cicatriz se estendia do lado direito da sua face, começando na
altura do olho e descendo até a mandíbula. Seu nome era Ona.
- Garoto! - disse uma voz severa de frente da
cabine - Estamos chegando ao acampamento. Vá se esconder dentro da carroça.
O garoto obedeceu rapidamente e fechou a
redoma, bloqueando a escaldante luz solar. Ele obedecia rapidamente às ordens
de Loretta, a moça que estava conduzindo o veículo.
Depois de alguns minutos, a carroça parou. Ona
ficou calado, ouvindo Loretta saltar do vagão e amarrar os cavalos. Ela era
alta e magra, mas ao mesmo tempo bem curvilínea. Seus cabelos era também
longos, de uma cor negra, assim como o vestido longo que usava, alheio ao sol
do deserto. De fato, era uma mulher impressionante em vários sentidos. Não que
isso importasse a Ona. Aliás, pouca coisa importava para ele no momento.
Ona vinha de uma família rica, que morava na
cidade de Aikon, que significava "na borda do deserto". Sua vida era
bastante feliz e pacata, e se resumia a ajudar nos negócios políticos da
família. Aikon era contente, próspera e segura, até virem os orcs. E sua
recém-adquirida política expansionista.
O fato é que, cidades como
Aikon raramente eram defendidas pelo governo central. As áreas próximas ao
deserto eram muito perigosas, e as tropas de segurança se limitavam às
montanhas que circulavam Gohr. Como resultado, a cidade foi massacrada. Ona foi
o único sobrevivente, entre os corpos de amigos e família. A Ele e o que sobrou
o dinheiro de sua família.
Com esse dinheiro, Ona tinha planos. E bem
grandes. Ao chegar na Fortaleza dos Mercenários, localizada no topo da montanha
de Hift, na borda do deserto, descobriu o motivo da recém-adquirida vontade de
expansão orc. Havia “algo” que contia
as bestas, e elas o haviam capturado. Ona estava disposto a resgatar esse algo.
Por isso, contratou os serviços um tanto quanto caros de Loretta, a Arqueira. E
aqui estavam.
Loretta apareceu pelos fundos
da carroça, coletando uma aljava, um arco longo, e duas adagas.
- Fique dentro daqui e não saia. A moça então
fechou a redoma.
Ona nunca foi corajoso. Sempre
foi tímido, reservado e , até eventos recentes, pacífico. Só que sua
curiosidade superava sua covardia por um palmo. Assim, ele espreitou lentamente
para fora, e ficou em uma elevação, assistindo Loretta descer até o acampamento
orc.
O acampamento em si era algo
bastante rudimentar. Uma dúzia de tendas de pele de animais diversos se
espalhava, formando um semicírculo cuja abertura embocava na entrada da
depressão. Pequenas colinas ajudavam a delimitar a área em que os monstros se
encontravam. E, diretamente oposta à entrada, havia uma pequena construção
móvel de pedra negra, com uma grossa porta metálica com barras.
Perto dessa construção, havia
cerca de duas dúzias de seres estranhos, semelhantes a lagartos, chamados de
Recons. Eram bestas bípedes e carnívoras, cuja pele variava de verde brilhante
a um negro sujo. Embora fossem ferozes, costumavam ser usados como montarias,
tanto que uns ainda usavam arreios. Seus cavaleiros estavam dispersos pelo
local, em uma visão que Ona pretendia não ver novamente.
Orcs eram brutamontes. Tinha em média dois metros
de altura e pele verde-clara, ressecada pela sobrevivência em Gohr. Ao
contrário do dito popular, não eram musculosos, embora não se encaixassem à
categoria de "magros". Eram simplesmente gigantescos. No entanto, a
natureza lhes dispôs de armas mais ameaçadoras do que músculos. Seus dentes
eram todos grandes e afiados, e sua resistência e força os tornava ameaça a
qualquer um com bom senso. E, claro, havia as armas. Machados, principalmente.
Grandes peças de ferro e madeira que chegavam a um metro, capazes de partir
facilmente um homem em dois pedaços de carne. Junto com eles, roupas feitas de
couro animal, cortadas de modo a proteger do sol. Não era exatamente um
exército orc que estavam vendo, mas sim um bando de arruaceiros.
“Um bando de arruaceiros que conseguiu o que nenhum exército conseguiu”,
pensou Ona. Não conseguia acreditar que eles tinham aprisionado o
"algo". E também não conseguiu acreditar que estava os vendo
novamente. A espécie daqueles malditos havia matado sua família, Seus amigos e
destruído Sua cidade. Lágrimas correram pelo rosto de Ona e por sua nova
cicatriz. Uma fúria latente voltou a se agitar em seu sangue. Que Loretta mate
todos, pensou, embora houvesse uma pequena parte do seu corpo que duvidasse que
aquela simples mulher derrotaria os monstros que fizeram o que nenhum outro
havia feito. Pois bem, a qualquer momento descobriria, pois ela havia chegado à
entrada do acampamento.
Como já foi dito, orcs não são exatamente o
grupo mais sociável. Era raro qualquer humano entrar em uma base deles. Assim,
eles não têm uma segurança bem-feita, apenas o mínimo para evitar ataques de
feras do deserto. No caso, dois vigias estavam patrulhando a entrada. Quando
viram Loretta, ficaram um tanto quanto perplexos. Uma humana fêmea, vindo
sozinho como gado para o abate? A dupla foi se aproximando dela, preparando
seus machados. Quando viram o arco e a aljava, desandaram em correria até ela.
Ona prendeu a respiração, antecipando a cruel morte da arqueira, que não tinha
tempo de preparar o arco...
O primeiro orc desferiu uma
machadada horizontal, mirando o pescoço de Loretta. Ela se abaixou, e antes do
movimento do monstro terminar, puxou a adaga de seu bolso e a arremessou contra
o pescoço verde do inimigo. Ele soltou um som engasgado, e morreu no instante
seguinte. Antes de o corpo cair, ela pegou a adaga do cadáver e lançou contra o
joelho do segundo orc, que se aproximava correndo. Ele caiu, e enquanto estava
descendo, a arqueira puxou outra adaga e cortou a garganta dele, se esquivando
habilmente do novo cadáver.
Ona ficou exasperado com a
facilidade com que a mercenária se defendeu. E aparentemente os outros orcs
também. Eles começaram a correr em direção à arqueira, enquanto ela tirava
calmamente o arco das costas. Ela posicionou a arma, sacou uma flecha da
aljava, e começou a matança. Ona mal a via atirando, nem as flechas no ar, mas
via os orcs caindo. Cada tiro era fatal, e logo os corpos de uma dúzia deles
estavam no chão, e seu sangue pintava de rubro o cenário do deserto.
Com o tempo, os orcs
remanescentes elaboravam uma nova estratégia. Eles se esconderam atrás das
barracas, cuja pele de animal era grossa o suficiente para impedir as flechas
de alcançarem seus órgãos vitais. Loretta aproveitou esse momento para alvejas
as montarias. Enquanto os Recons agonizavam, a mercenária foi se aproximou do
edifício negro. Ao perceber isso, os sobreviventes correram desesperadamente em
sua direção. Era o que a arqueira estava
esperando. Ela pegou o arco e deu uma meia-volta em torno de seu eixo, atirando
nos orcs remanescentes.
A depressão ficou em silêncio,
cheirando a sangue e morte. Loretta se virou, guardou o arco e entrou no
edifício. Ona prendeu a respiração. Alguns minutos se passaram. De repente, a
porta metálica se abriu, saindo a mulher apoiando um homem em seu ombro.
Ona viu aquilo e desceu
correndo para encontrá-los. Aquele que Loretta resgatou era quem havia
defendido Aikon durante vinte anos. O paladino dos oprimidos, que havia
derrotado cem orcs em uma noite. Aquele que derrotou uma besta Hazaras com suas
próprias mãos. O protetor de Gohr.
Ankho, o Bárbaro, havia sido
resgatado.
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