Nova York, num futuro próximo.
O alarme do rádio relógio ecoou pelo acanhado apartamento. De olhos abertos, fitando o teto, Albert Kirkman já estava acordado há tempos. Passara a noite em claro pensando em problemas do trabalho. Este vinha consumindo sua vida nos últimos tempos. Havia se formado em direito em uma boa faculdade, com muito esforço, e com as melhores notas. Era de família muito pobre, porém graças a uma bolsa conseguida por jogar bem basquete no colegial, tinha tido a oportunidade de concluir os estudos. Poderia até ter sido jogador profissional, caso um acidente de carro não tivesse deixado um de seus joelhos comprometido. Mas, apesar de toda a boa formação, a única oportunidade que havia surgido era no escritório de um coreano obeso e calvo chamado Kyong. Este lhe impunha uma rotina de semiescravidão, em troca de um salário de fome. Sonhava em conseguir um emprego melhor, mas a recessão na economia americana naqueles dias não deixava muitas possibilidades. Apesar disso, uma oportunidade havia lhe batido a porta, e esta também era uma das razões da sua insônia.
Um velho amigo de escritório que havia prosperado repentinamente em uma firma que havia se estabelecido há alguns meses na cidade, vinda de Chicago, lhe havia passado um cartão misterioso em branco que segundo ele lhe seria muito útil caso ele aceitasse fazer “certas concessões”. Pensou logo em tramoias jurídicas ou corrupção política, mas o conhecido tinha lhe garantido que não se tratava de nada disso. Não que não pensasse nisso, pois a vida que vinha levando o estava impelindo a aceitar praticamente qualquer coisa. Os pais já haviam falecido há algum tempo, e estava realmente por sua conta. Pegou o telefone e ligou para o Sr. Kyong, dizendo que estava doente e que não poderia ir trabalhar naquele dia. Albert desligou o telefone antes que o coreano pudesse terminar a rajada de impropérios contra ele. Não suportava mais sequer ouvir a voz do, se tudo desse certo, futuro ex-chefe.
Será que estava se precipitando? As instruções que o amigo havia lhe dado eram no mínimo estranhas, mas a sua vida estava tão monótona e insuportável que qualquer coisa que o retirasse da rotina era bem vinda. Abriu uma gaveta da escrivaninha amontoada de papéis e com um computador velho e pegou o pequeno cartão de visitas branco, sem absolutamente nada escrito. Suspirou, e pensou por um instante se aquilo não seria uma brincadeira do velho Arthur, que era notório por infernizar o Sr. Kyong com pegadinhas. Mas, afinal de contas, não tinha nada a perder. Lembrou-se cuidadosamente das instruções que o colega havia passado. Com uma pequena agulha que usava para costurar de volta os botões de suas surradas camisas, fez um pequeno furo na ponta do dedo indicador da mão esquerda. Uma pequena gota de sangue apareceu e ele a derrubou sobre o cartão.
A princípio, nada aconteceu. Começou a sentir-se um idiota ainda maior. Teria caído em mais uma pegadinha de Arthur? Mas este sentimento repentinamente desapareceu quando a pequena gota vermelha começou a reagir com o papel do cartão. Formou-se primeiro um borrão avermelhado, que lentamente foi tomando forma para finalmente formar uma sentença.
Estava tão fascinado por aquele cartão que quase caiu da cadeira quando o telefone tocou. Recuperou o fôlego, ajeitou os óculos de aros grossos e recobrou o fôlego para dizer um tímido alô.
- Eu gostaria de falar com o Sr. Albert Kirkman.
- É ele. – temeu que fosse do escritório avisando que tinha sido demitido.
- Olá Sr. Kirkman. Meu nome é Samantha Rogers e eu sou do setor de Recursos Humanos da Eternidade S/A. O seu nome nos foi indicado pelo seu amigo Arthur Sanders para uma vaga no nosso setor de advocacia. O senhor teria um tempo disponível para conversarmos?
Estava atônito. Que coincidência maluca era essa? Assim que a palavra se formara pintada com o seu sangue no cartão o telefone tocara e agora estava falando com a própria empresa, que lhe oferecia uma entrevista de emprego.
- Sr. Kirkman? – A voz da mulher no telefone o fez voltar à realidade.
- Claro… hoje é um bom dia para mim. – as palavras saiam trôpegas de sua boca.
- Eu imaginei. – Kirkman estava tão atônito que nem reparou na afirmação estranha. – Nós temos um horário de funcionamento não muito ortodoxo. O que me diria de 9 da noite?
- Claro, por mim, tudo bem. – Não raciocinava direito para questionar qualquer bizarrice.
Samantha lhe passou o endereço do escritório onde a entrevista seria realizada. Ele o anotou em um pedaço de papel. De repente começava a se sentir bem, como se uma porta lhe havia sido aberta, mesmo que de uma forma extremamente estranha. Olhou pela janela do apartamento e se deu conta que tudo aquilo tinha acontecido em questão de minutos depois que havia se levantado da cama, e ainda eram pouco mais do que 5 da manhã e o sol ainda nem tinha saído direito. Levantava-se sempre bem cedo para conseguir chegar a tempo no trabalho, pois havia que tomar dois ônibus para sair do seu bairro de periferia.
- O horário deles é realmente não ortodoxo.
Voltou para a cama e dormiu bem como há muito não dormia.
Parte 2 – Entrevista de Emprego
Tinha limpado os últimos 20 dólares de sua conta bancária para pagar um táxi para o centro da cidade. Não queria arriscar amassar o melhor terno que tinha dentro de um ônibus abarrotado de gente.
Nem fazia ideia de como iria embora para casa, pois nem dinheiro para o ônibus havia lhe restado. Poderia pedir emprestado algum para Arthur, se tivesse a sorte de encontrá-lo na empresa.
O que importava é que agora estava sentado no elegante saguão do 13º andar de um proeminente edifício comercial, aguardando pela tão esperada entrevista que poderia lhe dar um emprego novo e uma nova perspectiva. Estava ansioso e preocupado em passar uma boa impressão. Levantou-se e perguntou a recepcionista onde era o banheiro. Ela era uma ruiva sensacional que não tirava os olhos dele desde que ele havia chegado. Indicou-lhe uma porta no final de um corredor. Até então não havia percebido como ela o engolia com o olhar. Não que ele não levasse jeito com as mulheres, muito pelo contrário. Era um negro de quase um metro e noventa de altura, porte atlético e olhos verdes que arrancavam suspiros. A cabeça raspada dava um ar de jovialidade aos seus trinta e três anos. Porém, com a vida que vinha levando, tinha deixado de lado até a azaração, pois não lhe sobrava muita coisa do salário para gastar em baladas. Dirigiu-se até o banheiro, onde para sua surpresa não havia espelhos. Percebeu pelas marcas na parede que os mesmos haviam sido arrancados há pouco tempo. Como já estava ali mesmo, passou uma água no rosto e se arrumou o melhor que pode no reflexo de um toalheiro de metal.
Voltou pelo corredor e perguntou despretensiosamente para a recepcionista o que havia acontecido com os espelhos. Ela pareceu se divertir muito com a pergunta, como se ele tivesse perguntado alguma coisa absurda. Respondeu que eles haviam sido levados para manutenção. A ruiva começou a lhe dar um frio na espinha, e preferiu calar-se e voltar a sentar-se na poltrona. Ficaria ali por mais alguns minutos saciando os olhares da ruiva, até que o telefone na mesa dela tocou.
- A senhorita Rogers vai atendê-lo agora Sr. Kirkman. – Fez uma menção com a cabeça para que ele a acompanhasse.
Seguiram por um corredor até uma porta que tinha o nome de Samantha na porta. A ruiva abriu a porta para ele e entrou no escritório mais elegante que já tinha visto na vida.
Havia estantes com livros enormes, que pareciam ter muitos anos de idade e serem caríssimos. Os móveis eram todos de aparência clássica, e a iluminação indireta da sala dava um ar todo especial ao ambiente. Achou-a até um pouco escura demais, porém muito aconchegante.
No fundo do escritório, atrás de uma enorme mesa estava Samantha Rogers, a mulher com que havia conversado ao telefone. Era uma morena extremamente atraente, assim como a recepcionista. Ela lhe estendeu um aperto de mão firme como ele não experimentava há muito tempo. Sentiu a pele sedosa e fria em sua mão. Estava realmente gelado ali, provavelmente por causa do ar condicionado.
Ela pediu que se sentasse e ficasse a vontade. Sentiu-se a vontade, mas uma coisa em particular o despertou certa desconfiança. Apesar de toda a postura de executiva em seu tailleur e a maquiagem carregada, vista de perto e com atenção, não aparentava ter mais do que dezesseis ou dezessete anos. Aquilo o intrigou, mas não estava ali para questionar a idade de sua contratante.
- O seu currículo é impressionante. – ela começou a conversa.
- Eu não me lembro de ter enviado um, na verdade… – absolutamente nunca havia enviado nada para a empresa. O único contato que havia tido havia sido o telefonema misterioso pouco depois de mexer com o “cartão de visitas mágico”.
- Pode ficar tranquilo Sr. Kirkman. Nós sabemos tudo sobre você e devo dizer, ficamos muito impressionados. – Ela percebera que ele havia ficado desconfortável. - Deixe-me explicar para o senhor sobre a natureza dos negócios de nossa firma. Nós atendemos um tipo muito restrito de cliente Sr. Kirkman. São pessoas que acumularam fortunas enormes durante as suas… Vidas. – Ela enfatizou estranhamente a palavra vida. - Porém, estes mesmos clientes necessitam, eventualmente, desaparecer. Nosso trabalho é fazer com que seus bens continuem lhes pertencendo, mesmo depois que eles sumam de vista e retornem. Faz parte do nosso trabalho, também, providenciar-lhes novas identidades. Existe também toda a questão logística, mas essa é bem menos interessante… – ela sorriu para ele.
Kirkman estava atônito. Com que tipo de gente estaria se envolvendo? Seriam mafiosos? Estava com medo.
- Com todo o respeito, Srta. Rogers, mas não me parece que a natureza dos negócios de sua firma seja lícita. – escolheu as palavras com cuidado. Tinha a impressão que a qualquer momento um russo ou italiano entraria na sala com uma arma para matá-lo. A executiva franziu o cenho, porém sem deixar o ar jovial de lado.
- Posso lhe garantir que não há nada de ilícito em nossos negócios. Bem, pelo menos não no sentido que o senhor está imaginando. A necessidade de nossos clientes por uma nova identidade nada tem a ver com crimes, de qualquer natureza. Digamos que certo aspecto referente à longevidade de nossos clientes poderia despertar… Como direi… Questionamentos na sociedade. – abriu uma gaveta da enorme mesa de madeira nobre e retirou o que parecia ser um álbum de fotos antigas. Ela o colocou sobre a mesa e o empurrou na direção dele.
- Talvez isto lhe ajude a entender melhor…
Albert pegou o álbum sobre a mesa e o abriu. A princípio, tratava-se apenas de uma xilogravura de uma família que parecia ter vivido na época vitoriana. Porém, quando começou a folhear as outras páginas, começou a perceber o que de fato acontecia. A mesma foto de família se repetia pelo que parecia ser décadas. Às vezes com um membro a menos, às vezes com um membro novo. Porém, praticamente não havia diferenças entre a família vitoriana com uma em uma foto dos anos setenta, por exemplo. A semelhança não era simplesmente de indivíduos da mesma família: eram as mesmas pessoas, vivas durante o que seriam centenas de anos.
- Isto é impossível… – balbuciou incrédulo.
- Realmente é Sr. Kirkman? – ela o observava com um olhar calmo.
Quando ansiava por tirar a sua vida da rotina, nunca havia imaginado uma coisa como aquela. Estava aterrorizado e ao mesmo tempo encantado com tudo aquilo.
- Não tenha medo Albert. – Ela o chamou pelo primeiro nome. Parecia ter lido seu pensamento. Ou será que estava deixando transparecer o quanto estava petrificado? Fechou o álbum de fotografias e o colocou lentamente sobre a mesa. Levantou-se e começou a caminhar em direção a porta. Samantha não fez nenhuma menção em impedi-lo, apenas observou. Ele chegou a colocar a mão na maçaneta, mas não conseguiu girá-la. De repente começou a lembrar-se da vida que vinha levando, da solidão e da mesmice, do dinheiro contado e da falta de perspectivas com o futuro. Fechou os olhos e inclinou a cabeça até que ela tocasse a porta. Virou-se e voltou a sentar-se na poltrona em frente à mesa da executiva.
- Se eu aceitar trabalhar na sua empresa, eu serei um de vocês, certo?
- Uma vez dentro, não haverá como voltar atrás.
- Eu… Aceito. – Samantha lhe sorriu. Levantou-se e caminhou lentamente até atrás da poltrona onde Kirkman estava sentado. Apoiou as mãos nos dois ombros de Kirkman, depois desceu a cabeça até perto de sua orelha e sussurrou na voz mais sensual que ele tinha ouvido até então.
- Bem vindo, Albert.
Samantha cravou os caninos fundo no pescoço de Albert. Ele, porém não sentiu nenhuma dor. Poucos segundos depois já estava inconsciente.
Estava contratado.
Daniel Rossi
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